Os sapatos se confundiam no
tatear dos passos arrastados e cambaleantes, contra sua própria vontade em
serem cúmplices da vergonha do seu senhor.
Molhados da lama suja que a chuva misturou, onde foram os
primeiros a beijar na queda ao se enroscarem na dança das pernas perdidas sem
ritmo, sem musica, sem direção, sem esperança.
Com partes encobertas de uma sujeira seca de há tempos caída
dos lábios que também obrigados, devolveram numa condição disforme o que se
guardou em abundancia no interior daquele que nunca teve controle.
Eram apenas alguns goles no final de semana, que depois já
eram também durante a semana e que da condição de senhor passou a escravo do
que um dia chamou apenas de diversão para esparecer.
Seu prazer gerava o seu desprazer quando se via na situação
sã, e para suportar buscava mais prazer e muito mais prazer e a bola de neve
crescia.
De bar em bar, de tropeço em tropeço, em qualquer tempo ou
condição, era o único caminho pós-trabalho que aquele homem cego enxergava.
Ralos, batidos e abatidos do seu trabalho de chofer a
carregar o peso morto que ainda insistia na vida, se é que assim se podia
chamar a condição daquele velho homem.
Gastava o salário do mês com todos os seus “amigos” de copo
e não concedia a aposentadoria ao esforçado par de sapatos.
Já sem vida e sem cor, cansados da rotina do dia-dia que
dia-dia se repetia no mesmo caminho de idas e vindas sem chegar a lugar algum.
Cedo.
Tacados no pé, sem fé, sem respeito.
Noite,
Tacados no chão, sem coração, de qualquer jeito.
Mas uma alegria aliviava o judiado coração daqueles objetos
que um dia sonharam numa vitrine de loja fina em conhecer aquele que os levaria
para passear pela vila, pela cidade, pelo mundo.
Essa felicidade voltava quando um par de pequeninas mãos os
sustentavam com todo carinho no fim da noite e os levava para o renovo tão
esperado, enquanto o seu dono já se encontrava jogado meio torto com a perna
pendurada para fora da cama de consciência desligada, se é que a tinha ligada
durante o dia.
O pano macio imbuído em água morna tirava as manchas do dia
e sorriam os velhos sapatos no alivio da gentileza.
O creme escuro corria preciso por entre as curvas marcadas
da surra do tempo e preenchia toda a superfície proposta para depois deixar a
suavidade da flanela surfar nas ondas deslizantes do brilho.
Recostados ao pé da cama, lindos, repousavam contentes e
renovados contemplando dois pezinhos descalços, por não terem calçados, que se
distanciavam lentamente em suas pontas para não ascender à fúria daquele que
emitia um som estrondeante e se debatia
como um pugilista lutando no ringue da sua cama com seu sono pesado.
De manhã a mesma mesmice se faria acontecer até anoitecer,
era sempre a mesma e velha historia, qual comida sem sabor.
Levantava assustado, correndo, atrasado e pisava os
companheiros de jugo sem se quer se atentar para a sua bela aparência, pois
maior era a preocupação e aflição em agarrar a primeira garrafa.
Sem também despedir um beijo, um abraço, um simples carinho
ou um olhar para aquele que lustrou e deixou tão belos os sapatos do seu
querido papai, que por mais rude, estúpido, ignorante, viciado, irresponsável,
e ausente, ainda assim e acima de tudo, era o seu papai amado.
A única forma de aproximação que um filho encontrara para
estar próximo do seu pai, era através de um velho par de sapatos.
O tempo correu e aquelas pequenas mãos ficaram cada vez mais
habilidosas que começaram a lustrar sapatos nas praças durante o dia para a
família ter o que comer.
Todos aqueles anos se passaram e em muitos deles, nos finais
de noite, foram as lagrimas que limparam aqueles velhos e únicos fantasiosos
amigos, os sapatos.
Então aquelas mãos cresceram e adultas alcançaram outros
horizontes, e já não estavam mais manchadas e sujas de graxa, mas empunhavam
uma bela caneta de um respeitado homem trabalhador, empregado numa renomada
empresa, que assinava um cheque de um presente no seu primeiro mês de serviço,
do seu primeiro ordenado.
Uma bela caixa embrulhada num papel brilhante enfeitada num
bonito laço.
No velho pai, as rugas, as marcas no rosto, do trabalho, do
desperdício de tempo encerrados nos copos dos bares, daquele homem que nunca
sentiu nada até aquele dia quando pegou aquele pacote repousado no leito de seu
quarto que abriu cuidadosamente.
Quando tirou a tampa da caixa, a garganta engoliu seco, suas
mãos ficaram tremulas e a cabeça baixou parecendo pesar-lhe a consciência.
Segurou o choro enquanto pode, mas não pode, não suportou e
desabou.
O muro do coração caiu e as lagrimas desceram em abundancia
qual comporta rompida ao ler uma simples
frase dum cartão colocado dentro da caixa com um lindo par de sapatos:
-
Pai, eu te amo!
A compreensão lhe fugia a mente, por apesar de ter
abandonado seu filho, morando na mesma casa e comendo na mesma mesa, como podia
o amor permanecer?
Aquele homem escondera por todo aquele tempo que sabia o que
fazia o seu pequenino enquanto ele dormia.
De como cuidara do seu papai da forma que podia, da forma
que encontrara.
Se escondia atrás da própria vergonha e fingia que não via.
Calçou os novos sapatos, levantou o corpo e os olhos,
decidiu ir além do seu orgulho.
A porta do quarto fechou atrás si e a sala testemunhou o
perdão, o amor, o abraço de um pai que sempre amou o seu filho.
Foram muitos e muitos anos, mas um dia aquele menininho se
fez homem e conseguiu quebrar o coração mais duro que já se viu e ele nunca
mais viu o seu pai endurecer, nunca mais.
O amor é a única arma que não é uma arma, pois não mata e
sim devolve a vida.
Aquele menino conheceu o amor, e o amor se chama Jesus.
Ele apresentou ao seu próprio pai mais que um simples amor
de filho, apresentou Jesus.
Por: R. Rodrigues